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A Crise da TV do Estado português


Por Francisco Rui Cádima

À beira de uma crise de consequências imprevisíveis, a RTP é hoje uma empresa que acabou por criar um alargado consenso na sociedade portuguesa. E a dois níveis: se os portugueses não têm dúvidas de que é necessário manter um serviço público de televisão, também concordam genericamente que o principal canal da televisão do Estado português – a RTP1, não faz mais do que mimar a oferta dos operadores comerciais, não correspondendo àquilo que se esperava dela e que está contratualizado no Contrato de Concessão. A saber: a TV pública deve «desenvolver uma programação pluralista, inovadora e variada, que responda a elevadas normas éticas e de qualidade e que não sacrifique esses objectivos às forças do mercado» (...); deve «proporcionar uma informação imparcial, independente, esclarecedora e pluralista, que suscite o debate e que exclua a informação-espectáculo ou sensacionalista» (...); deve «privilegiar a produção própria e nacional, nomeadamente de autores qualificados nos domínios da ficção portuguesa e do documentário».

Primeiro Acto

A crise mais pronunciada do audiovisual público português começa ainda no final dos anos 80, com aquilo que então se chamou a «preparação» do monopólio do Estado para a era da concorrência, dado que se avizinhava a entrada de operadores comerciais no mercado português logo no início dos anos 90.

Governavam nessa altura os sociais-democratas (PSD) e na RTP predominava fundamentalmente o responsável de antena, José Eduardo Moniz, hoje director de programas e de informação da TVI, o canal que tem liderado o mercado português desde Setembro de 2000. Foram então feitos, nessa altura, significativos e desproporcionados investimentos, sobretudo nos mercados estrangeiros de programas, de forma a permitir à RTP manter uma posição de claro ascendente sobre aqueles que viriam a ser os primeiros operadores de televisão privada em Portugal – a SIC (que emitia pela primeira vez a 6 de Outubro de 1992) e a TVI (a 20 de Fevereiro de 1993).

Para os analistas independentes era então muito claro que não haveria mercado para quatro canais a disputar o «bolo» da publicidade. Diversos alertas foram então lançados, mas a verdade é que o governo de Cavaco Silva decidia avançar com duas novas licenças, mantendo a RTP1 e a RTP2 também na disputa da publicidade.

Segundo Acto

Quase em simultâneo com a liberalização da Lei da Televisão, no início dos anos 90, o governo de Cavaco Silva decide acabar com a taxa de televisão em Portugal, retirando à empresa uma fonte de receita – e um vínculo directo à comunidade dos cidadãos/contribuintes -, o que teria inevitáveis consequências e agravaria o défice da RTP que a partir de então progride exponencialmente.

Em acréscimo, o mesmo governo aliena à Portugal Telecom a rede de emissão da RTP, por um custo que não ressarcia a televisão pública de um importante meio, passando a ser devedora sobre o aluguer da mesma rede, que passa, portanto, a ter obrigatoriamente de fazer.

Também o mercado passa a não ser nada favorável à RTP. A SIC começa as suas emissões e rapidamente se posiciona como um canal do agrado da maioria dos portugueses. A estratégia face à Rede Globo, sua sócia, que lhe deixa o exclusivo da sua programação e em particular das telenovelas (desde 1977 o género de maior audiência em Portugal), constitui o golpe fatal sobre a «histórica» RTP. A partir de 1995 a SIC passa a líder absoluta de audiência em Portugal.

Em síntese, a situação actual resulta em boa parte de um acumular de erros cometidos no início dos anos 90. Recordaria alguns dos principais: a indefinição da estratégia do operador público para a fase da liberalização, o fim da taxa de televisão e a alienação da rede de emissão, a concessão de alvará a dois operadores privados e não a um, como recomendavam os estudos técnicos, e a inexistência de cadernos de encargos para os canais comerciais.

Terceiro Acto

Em Outubro de 1995 os socialistas (PS) substituem os sociais-democratas no governo. É criada um Comissão de Reflexão sobre o Futuro da Televisão, que se suporia ser a entidade que daria parecer sobre as grandes opções estratégicas para a RTP, mas as diferentes sugestões feitas não colhem adeptos no seio do governo.

Na Comissão, procurava-se o «refundar» da RTP1 como autêntico serviço público de qualidade e criar na RTP2 um projecto mais adequado aos tempos que corriam. Diversas fórmulas foram pensadas – canal de saberes/conhecimento, das regiões, em sistema de Pay TV, etc. Concretamente, nos pontos 11 e 12 das Conclusões e Recomendações, alínea e) – «Quanto à definição do modelo de serviço público e dos seus financiamento e organização» (Relatório Final – Outubro de 1996) – a Comissão de Reflexão Sobre o Futuro da Televisão defendia: «Alternativamente à manutenção do status quo da RTP2, a passagem do segundo programa ao regime de televisão por assinatura, mediante associação da empresa com investidores idóneos e subordinação a um rigoroso caderno de encargos, constituiria factor de: – Intervenção reguladora no mercado, através da libertação de recursos financeiros necessários à satisfação dos encargos de serviço público da RTP e ao fomento das receitas publicitárias dos operadores privados; -Superação das antinomias existentes nos dois canais de cobertura nacional da RTP e, em particular, da descaracterização do seu primeiro programa; – Introdução sustentada da operadora do serviço público no segmento da televisão paga; – Desenvolvimento, pela RTP, de parcerias estratégicas aptas à aquisição de catálogos importantes de direitos e know how qualificado;

– Redução substancial do passivo da empresa.»

E no ponto 12: «Na hipótese contemplada no número anterior, a programação de serviço público recentrar-se-ia na RTP1 – que veria reduzido, por seu turno, o actual grau de dependência do mercado publicitário -, sem prejuízo da manutenção, no segundo canal, de padrões ético-qualitativos exigentes.»

Sendo mantido tudo como dantes, agravando-se a quota de audiência e de mercado, vendo crescer ao seu lado a SIC e a TVI – para além da TV Cabo -, a RTP assistia ao acelerar imparável do seu défice financeiro: de cerca de 50 milhões em 1995, passaria a cerca de 200 milhões em 2001. A empresa é hoje, no contexto da coesão económica das finanças públicas no quadro da União Europeia, um dos casos graves no plano nacional. Os próprios socialistas reconhecem agora, após a derrota eleitoral, que a sua gestão do audiovisual público foi uma das suas piores áreas de actuação desde 1995 até 2002.

Quarto Acto

Impunha-se portanto assumir medidas drásticas. Os dois grandes partidos, PS e PSD, na luta eleitoral para a legislatura da era pós-Guterres (2002), coincidiam num ponto: eram necessárias medidas de emergência e poder-se-ia chegar inclusivamente à liquidação da RTP, criando de raiz uma nova empresa para o serviço público, que poderia ser eventualmente prestado por um só canal. O secretário-geral do PS, Ferro Rodrigues, chegou também a referir-se à crise da RTP, tendo então dito que a empresa poderia ter uma evolução exactamente nesse sentido se a prazo – até um máximo de dois anos – os problemas não tivessem resolvidos.O PSD vencia as eleições e no seu Programa eleitoral lá estava, em referência à RTP: « a) Reestruturar a empresa a partir de uma auditoria de gestão, organizacional e financeira conduzida num curtíssimo prazo e com datas bem definidas; b) Aplicar um plano financeiro de curto e de médio prazo, sendo o primeiro uma forma de resolver alguns problemas imediatos e devendo o segundo estar ligado à concretização de um plano de reestruturação com calendários bem definidos; c) Cindir em duas empresas a actual RTP, sendo cada uma delas detentora de uma das licenças que a RTP hoje detém; d) Tendo em conta a evolução do panorama audiovisual português, alienar uma dessas empresas em condições a determinar; e) Concentrar o serviço público de televisão num canal generalista, na RTP internacional e na RTP África. Manter a marca RTP como um exclusivo da empresa entre os canais generalistas; f) Alienar parte, ou mesmo a totalidade, das empresas participadas do grupo RTP; g) Quantificar de forma rigorosa e a partir da auditora atrás referida o custo real do serviço público de televisão, passando este a ser financiado pelo Orçamento do Estado (como aliás já acontece, mas sem qualquer tipo de rigor e transparência); h) Fixar padrões de qualidade para o canal generalista, assente numa definição do que é um serviço público de televisão que defenda a cultura, a língua, a identidade nacional e a coesão social. Um canal sem preocupações de concorrer com os canais privados, mas que possa ser um parceiro activo na melhoria do panorama audiovisual; i) Autonomizar os Centros Regionais dos Açores e da Madeira, em condições a determinar e mediante adequadas negociações com os respectivos Governos Regionais; j) Fazer da RTP Internacional e da RTP África verdadeiros instrumentos de uma política de defesa da indentidade nacional, no primeiro caso, e de cooperação, no segundo, o que implica a utilização de conteúdos produzidos pelos diferentes canais ou produtores nacionais.»Nomeado Ministro da Presidência, Morais Sarmento anuncia um só canal generalista, a redução do número de trabalhadores, deixando algumas questões em aberto: alienação ou liquidação de um canal, ficando o outro com, ou sem publicidade, conforme se concluísse através do parecer de uma Comissão independente a criar. E é nomeada uma nova administração, presidida por um destacado gestor socialista – Almerindo Marques. Mas a história não ficava por aqui. O Conselho de Opinião da RTP, com competência para se pronunciar de forma vinculativa, sobre as personalidades que integram as administrações da RTP, veta o novo Conselho de Gestão, com base numa argumentação que excedia, aparentemente, a sua competência específica.

De uma crise no audiovisual evolui-se aparentemente para uma crise institucional, com pedidos de intervenção ao próprio Presidente da República. O facto é que o estado da RTP não se compadece verdadeiramente com a falta de decisão e o atraso na intervenção. É fundamental actuar. E actuar no sentido da dignificação da televisão pública e da criação, finalmente, de um Serviço Público de TV acima de qualquer suspeita.

Como fazê-lo? – é a questão. A resposta só poderá ser encontrada num modelo radicalmente diferente do que predominou até agora. Nisso parece haver um consenso unânime.

Mas ou o futuro é construído contra o passado e o servilismo político e audimétrico da RTP, ou nenhum Orçamento de Estado rigoroso lhe poderá lançar a mão salvadora. Chegou-se ao ponto de não retorno. Chegou-se ao momento de chamar as coisas pelos nomes e de devolver a RTP ao campo da cidadania, retirando-a ao mercado e à guerra de audiências, que tanto mal lhe (nos) fez. Mal que, infelizmente, está bem à vista.

Artículo extraído del nº 51 de la revista en papel Telos

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Francisco Rui Cádima